Por Vera Lúcia Veiga Santana
Resumo:
A psicanálise, desde sua descoberta freudiana do inconsciente, continua sendo uma prática essencial para compreender os sintomas e o mal-estar na contemporaneidade. Este artigo explora como a psicanálise se renova para dialogar com as demandas subjetivas do século XXI, mantendo seu foco no sujeito e nos efeitos do inconsciente. Aborda ainda a importância da singularidade, da ética e da responsabilidade na prática analítica, destacando o papel da linguagem e do laço social.
Introdução
A descoberta freudiana do inconsciente trouxe à tona um novo modo de entender o sofrimento humano. Freud identificou os efeitos do inconsciente sobre o corpo biológico, especialmente no corpo das histéricas, dando origem ao conceito de sintoma . Hoje, em pleno século XXI, a psicanálise não negligencia as formações do inconsciente, mas busca renovar o sentido do sintoma para estar alinhada à subjetividade da época.
Para a psicanálise, não há sujeito sem sintoma. Os sintomas inconscientes surgem frequentemente de maneira inesperada, provocando mal-estar. A psicanálise é uma experiência de discurso que visa levar o sujeito a sair do que o faz sofrer, alcançando o bem-dizer da ética do desejo.
O Sujeito e o Inconsciente
A psicanálise parte da lei do inconsciente, que desarma o homem com um sentido desconhecido. Ela opera sobre o sujeito que se deixa tocar pelos efeitos do inconsciente, pela sua irrupção inesperada e pela desarmonia que isso lhe provoca. Lacan, em 1954, retirou a palavra “tratamento” da prática psicanalítica, substituindo-a por “experiência subjetiva”, unificando as vertentes terapêutica e didática da análise.
Jacques-Alain Miller reavalia hoje os termos “terapêutica” e “didática”, considerando-os inadequados para descrever os efeitos da psicanálise. A prática analítica comporta consequências que convergem para a fantasia do sujeito, sedimentada no dispositivo do Passe , que permite ao sujeito discorrer sobre o final de sua análise.
A Singularidade do Sujeito
A psicanálise se interessa pelo sujeito como efeito do significante, aquele que surge como desejante nas entrelinhas das palavras. O ser do sujeito resulta da articulação entre pensamento e palavra, conforme ensinado por Lacan: “pensamos com a ajuda das palavras”.
O ser do sujeito está do lado do enunciado (do sintoma), enquanto o falasser — que implica o sujeito que fala mais que o corpo que goza — está do lado da enunciação (do sinthoma). Essa distinção é crucial para entender como a psicanálise revela o sujeito do inconsciente que demanda análise.
A Ética na Prática Analítica
A psicanálise transmite respeito pela diferença e pelo que há de mais particular em cada sujeito. Na Itália, por exemplo, a garantia plena do direito de cidadania ao denominado “doente mental” está vinculada ao propósito de evitar que o tratamento seja um passaporte para a exclusão social.
A psicanálise prevê a articulação com projetos de tratamento que visem a reintegração social, mas principalmente a escuta do que impede o sujeito de assumir a responsabilidade por suas ações. Ela é irredutível quanto à questão da responsabilidade, afirmando que o homem é sempre responsável por sua posição de sujeito.
O Real e o Simbólico
A psicanálise é uma práxis que opera em direção ao real (ao núcleo de gozo do falasser), utilizando-se do simbólico. Quando o gozo se inscreve em um corpo, deve-se procurar o significante que o produziu. Lacan, em seu último ensino, denominou essa singularidade máxima de sinthoma .
Essa lógica do um-a-um e da singularidade do sujeito coloca em jogo o vazio e o gozo além dos significantes mestres que fazem a Lei para cada um. Quando alguém busca análise, é porque tropeçou em algo em seu caminho, confirmando a distância da psicanálise com questões de saúde mental ou harmonia possível.
A Psicanálise e as Neurociências
No debate com as neurociências, a psicanálise enfatiza a dimensão do sujeito e o parasitismo da linguagem que preexiste a ele. Lacan afirmou: “é sempre com a ajuda das palavras que o homem pensa, e é no encontro dessas palavras com o seu corpo que alguma coisa se esboça”.
A psicanálise reconhece a importância dos neurotransmissores, mas alerta que eles não contestam o inconsciente, a fantasia, as pulsões ou a estrutura significante. Também não nega a eficácia dos medicamentos, mas critica fechar os olhos às nuances clínicas dos sintomas.
A Transmissão do Saber Psicanalítico
O saber da psicanálise não é regulamentado nem encaixado no poder. Ele é inquietante, um desafio que precisa ser constantemente revisto. É um saber suposto, fundamentado na experiência analítica, mas que não pode ser demonstrado no real.
A transmissão do saber psicanalítico ocorre à margem do ensino universitário, atrelada à experiência de análise. Mesmo a transmissão via extensão tem sua razão na intensão, ou seja, na teoria da experiência analítica. Lacan criou uma forma de transmissão via matema , que exige demonstração, justiça e logicidade, mas que se distancia ao exigir amarração à experiência clínica.
Conclusão
No século XXI, a psicanálise enfrenta o desafio de uma clínica que não crê mais na transmissão do ideal pela via da universalidade do pai e de sua função significante. Hoje, ela está apoiada na foraclusão generalizada, tentando complementar a falta que estrutura a vida de todo ser habitado pela linguagem.
Os abalos da função paterna e a perda dos ideais trazem como consequência o esfacelamento dos laços sociais e o surgimento de novos sintomas, como segregação, exclusão, racismo e consumo desenfreado. A psicanálise não pode se omitir desses debates sob o risco de se alinhar à lógica dominante.
Diante dessas mudanças, é preciso colocar o acento na singularidade de cada estrutura, reintroduzir a dimensão do sujeito no um-a-um e introduzir essa mesma dimensão no marco social e institucional. A psicanálise deve continuar exercendo sua preciosa experiência na sociedade, garantindo a dimensão ética e subjetiva do sujeito no mundo.
Referências Bibliográficas
- Freud, S. (1976[1915]). “Artigos sobre metapsicologia”. In Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud , vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago Editora.
- Lacan, J. (1998[1965-1966]). “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. In Escritos . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
- Laurent, E. (1998[1975]). “A Extensão do Sintoma Hoje”. In Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise (23). São Paulo: Edições Eolia.
- Miller, J.-A. (2011). Curso de Orientação Lacaniana III . Aula de 2 de fevereiro de 2011. Inédito.
Sobre a Autora:
Vera Lúcia Veiga Santana é psicanalista e pesquisadora, dedicada ao estudo da psicanálise e suas interfaces com a contemporaneidade.
Contato:
Email: veraveiga@gmail.com
ISSN: 2177-2673
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