Os atuais tensionamentos da sociedade, muitas vezes expostos em discursos de ódio, como crise imigratória, racismo, LGBTfobia, “guerra” às drogas por meio de “pacificação” de favelas e comunidades, entre inúmeros outros, colocam em questão o que leva a civilização a gastar tantos recursos para dominar, docilizar e até mesmo eliminar o que é visto, por alguns, como um incômodo ou um desvio de conduta civilizada. Representantes desses discursos, inclusive, têm sido eleitos numa onda política conservadora, sustentando ideais de uma parcela da população acerca do que seria a moral e os bons costumes.

Mas por quê? Seria arriscado demais querer chegar a uma única resposta ou entender que há apenas um único fator que permite tal forma de organização política, mas podemos adentrar em alguns aspectos da questão com a psicanálise, a fim de evidenciar a matriz psíquica que a sustenta.


Em 1908, no trabalho intitulado “A moral sexual ‘cultural’ e o nervosismo moderno”, Freud discute questões relacionadas à civilização e à maneira como seus membros são tomados de certa forma por uma inadequação que causa sofrimento. No embate entre as restrições sociais de cada cultura e a busca por satisfação que movimenta o sujeito, nasce um conflito. As exigências pulsionais são colocadas, assim, como responsável pela inadequação diante das restrições culturais ditas como necessárias para o avanço da civilização, sendo a sua renúncia uma exigência civilizatória.

As pulsões exigem satisfação de qualquer maneira, aqui e agora, e sua renúncia pode resultar nas neuroses. Além da difícil renúncia, as pulsões podem encontrar caminhos substitutivos, adiamentos, amortecimentos, conversões, sendo que, de toda forma, elas buscam um destino que alivie a sua intensidade – incômoda para o aparelho psíquico – e é aí que a sublimação entra como processo que possibilita a criação de bens materiais e ideias no nível da cultura (Rinaldi, 1996, p. 45).

O “problema da cultura” é que cada indivíduo passará pela sublimação e pela criação de bens materiais e culturais de forma distinta, o que faz com que o não reconhecimento de algumas formas estejam presentes na civilização, dando início a uma discussão e tensionamento sobre o que é legítimo ou não de ser parte de um modo de viver ou de expressão daqueles que estão próximos.


Nessa exposição, nos deteremos nos aspectos subjetivos e inconscientes que legitimam o discurso de ódio, o preconceito e a eliminação massiva de populações inteiras – não sem considerar sua dimensão política e econômica. Daremos ênfase, entretanto, à compreensão de como, psiquicamente, sustentamos a construção do inimigo e conseguimos viver supostamente em paz com todos os conflitos existentes na cultura contra o próximo.

Há, na matriz freudiana, a evidência de um elemento estrutural confirmado de maneira muito evidente ao longo dos séculos: a natureza conflitiva na base da subjetividade humana. Aliada à noção de pulsões destrutivas e de civilização como fruto de processo histórico, a agressividade constitutiva do ser falante dá corpo à base teórica da construção do inimigo.


Como ler essa mensagem invertida hoje quando o sujeito é lançado face ao Outro em situações que fomentam a guerra, os conflitos armados e os diferentes modos de segregação? De acordo com Lacan (1962-1963/2005), surge uma imagem autenticada pelo Outro quando o sujeito se pergunta quem ele é. Entretanto, algo dessa imagem nunca se reflete completamente – pelas mesmas razões através das quais a linguagem não apreende toda a realidade vivida – e gera, portanto, uma falta, uma falha.

Nessa hiância, o sujeito suspeita e projeta o seu pior sobre o Outro orientado pela lógica do inimigo. Assim, interesses absolutamente externos ao sujeito – a saber, interesses dos mercados globalizantes, sedentos de recursos naturais, de domínio financeiro ou político local – essas inclinações de diversas e complexas ambições pousam sobre o corpo individual e acionam o gozo desmesurado e incontido que o habita como intensidade, sem necessariamente que o sujeito se dê conta dessa operação alienante.

Ela pode se sustentar, ao contrário, em decisões emancipadas e de livre arbítrio. Nessa imagem de liberdade, “o desejo está não apenas velado, mas essencialmente relacionado com uma ausência” (Lacan, 1962-1963/2005, p. 55).



Sobre os Autores:
Andréa Máris Campos Guerra e Lucas Alexandre Alves Rocha são professores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).


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